
O VINHO VERDE DOCE, EU E O CÃO
Mais uma peripécia em mais um dos dias de luta de minha Mãe para conseguir alimentos para si e os seus filhos e correspondendo ao chamamento do meu avô materno, Domingos José de Araújo (Domingos dos Ferreiros, nome pelo qual era mais conhecido), por um sinal combinado, de que quando ele precisa-se de minha Mãe para trabalhar, - e minha Mãe aproveitava para que nós nesse dia tivesse-mos alimentação assegurada - colocava no dia anterior uma toalha branca (sinal combinado, Internet daquela época) na janela de sua casa no lugar de Barjes, do outro lado do Rio Vade, em frente ao lugar do Tojal.
Nesta altura eu ainda não andava na escola, pois entrei nela já com quase 8 anos de idade, minha Mãe levou-me com ela, e é claro que eu comia mas também tinha que trabalhar e muito. Nesse dia a tarefa era levar o vinho novo, ainda um pouco doce mas já com álcool, de uma grande casa com 2 pisos, à qual chamava-mos Cabana, onde o meu avo tinha o lagar no piso de baixo, todo lajeado, com grandes dornas feitas em madeira a onde se pisava a uva, (agora já existem em Aboim, tanques feitos de cimento como o que a casa dos meus pais no Tojal tem já há muito tempo).
O vinho já estava em condições de ser levado para as pipas que estavam na adega térrea fresquinha, no fundo da casa em que meu avô habitava, um pouco mais a baixo, num percurso de cerca de 100m, (hoje entre as duas casas passa a estrada). Percurso este que, eu e minha Mãe percorria-mos de cantro (cântaro) de barro cheio, eu levava-o ao ombro e a minha Mãe à cabeça onde intercalava uma rodilha (um pano enrolado em forma de ninho). Algum tempo depois minha Mãe acreditou que a meio do percurso, eu encostando-me ao muro ali pousava o cantro para descansar, mas a situação era bem outra. Minha Mãe de pé a trás, foi-me observando e aos esses e esses que eu já fazia, apanhou-me com a "boca na botija", melhor dizendo, eu a beber pela malga de barro branca (tigela) que previamente tinha escondido ali junto do muro. Eu fugi, porque minha Mãe quando zangada mostrava alguns "espinhos ", mas eram espinhos de Roseira com o fruto de algumas Rosas para os filhos (alimentos), e quando os espinhos atingiam o meu corpo fisicamente, não me doía muito, porque eu sentia que a ela lhe doía muito mais.
Fui-me afastando, lembro-me de numa dada altura ter passado ao lado de umas poças de água (pequenas represas que ali se usam para regar os campos e lavadouro público de roupas) próximo da actual casa em Barges da irmã do meu Pai, a minha Tia Angelina (Angelina do Marta). Nesta altura, já tinha a companhia de um Cão, que não me lembro a quem pertencia, lembro-me isso sim, e muito bem, que acordei cheio de frio, agarrado ao Cão debaixo de uma meda (moreia) de palha de centeio, pertença de uma irmã mais velha de minha Mãe, a minha Tia Maria. Pelo lado de baixo da casa desta minha tia, havia a "minha figueira". Saindo debaixo da meda e ao aproximar-me da casa de minha Tia ela estava a rezar na frente de um Oratório na sua sala de jantar. Eu tremia, o Cão gania e ela veio ver quem era, exclamando. "Ai meu filho que andam todos à tua procura com lampiões, até já andam a procurar-te no rio", chorava de alegria e logo se apressou a levar-me a casa de meu Avô que era perto dali.
Minha Mãe ao ver-me, apertou-me com tanta alegria chorando que até deu para eu beber algumas lágriminhas que se despendiam do seu rosto e deu-se mais uma vez, o milagre dos "espinhos" transformados em rosas. Ah, nesse momento já não estava "bêbado" mas, com uma foooome, pois já passava das duas horas da manhã. Reparei que a madrasta de minha Mãe (Rosa), exclamou: "Ai meu Deus, vou já tirar o lampião da janela" (Lanterna de Candeia a Petróleo). É que tinha sido combinado que quando me encontrassem, tirava-se o lampião da janela, para que todos parassem de me procurar e regressassem a suas casas descansados.
Meu Avô, com aquele bigodinho sempre bem aparado, olhava-me profundamente e notava-se no seu olhar contentamento por eu ter aparecido são e salvo. Minha Mãe dizia-me às vezes, fitando-me com um sorriso e olhar brilhante que, eu era parecido com meu Avô e nesta minha foto no início deste texto, de quando eu tinha 13 anos, quem conheceu o Sr Domingos dos Ferreiros, poderá comparar, a verdade é que a minha Mãe também era parecida com ele. Antes de me ir deitar procurei o "meu anjo da guarda", o Cão, mas já tinha terminado a sua tarefa e deve ter voltado para o ninho onde me "deu guarida". Ora digam lá se eu não fui um "bêbado de vinho novo" com sorte?
Escrito por Félix Vieira